Tio Cirilo
Levei um susto quando fui falar com o cara. Ele, que estava sentado na parte de dentro do bar, levantou-se bruscamente e começou a discutir em voz alta com alguém à frente, mas não havia ninguém à frente. Um susto, além da constatação desconfortável de que um jovem bebendo cerveja sozinho num bar pode ser um louco. Eu sempre bebo sozinho em bares. Claro que cometo minhas loucuras e tenho minhas esquisitices, mas quem não é assim? Talvez eu seja mais que os outros, tudo bem. Talvez por isso tenha me tornado um artista, para ter um pretexto para cometer loucuras e ser esquisito. No entanto, isso não está certo. Minhas reflexões me levaram a um ponto inexorável: loucuras e esquisitices não tem nenhuma relação necessária com a arte. Pelo contrário. A maioria dos loucos e esquisitos são apenas loucos e esquisitos sem nenhum talento. O que é uma verdade muito triste – dessas que nem se repete alto por aí - porque, na maioria das vezes, a derradeira esperança dos loucos & esquisitos é que o mundo descubra estar diante de um grande artista, o que justificaria o nascimento, a evolução e a permanência de um ser tão desagradável e anti-social.
Falava do susto com o louco. Bem, dei as costas e saí do bar, chocado e triste, impressionado com essa minha sina de topar com malucos em toda parte. Tive tantos amigos que enlouqueceram que cultivei a paranóia de que eu era responsável, de que de mim emanava um fluxo maligno que adoecia a mente das pessoas.
Continuei andando pelas adjacências da Cruz Vermelha, como gostava de fazer. Lembrei automaticamente de outro louco. Meu tio Cirilo fora um rapaz genial, leitor voraz, líder estudantil, até sofrer uma crise e diagnosticarem esquizofrenia. Foi encaminhado para um hospital psiquiátrico onde lhe tostaram o cérebro com sessões infinitas de tratamento de choque. Nunca voltou ao normal. Sempre caminhando distraidamente para lá e para cá, fumando cigarro e totalmente incapaz de articular qualquer frase que não fosse: “me dá um cigarro?” A família costumava festejar quando ele se lembrava de alguém: “quem é esse, Cirilo?”. “Esse é o Miguelzinho”, respondia, para júbilo da carinhosa platéia familiar.
Quando eu tinha uns onze anos, encarregaram-me de ir semanalmente ao hospício onde ele estava, em botafogo, levar uma trouxa de roupas limpas e trazer outra de roupas sujas. Uma vez fiquei preso lá. Atravessei o saguão cheio de birutas e entrei no corredor. O quarto do tio era o terceiro à esquerda. Com a chave que me deram, eu abri o armário, peguei a sacola de roupas sujas que estava lá dentro, substituindo pela sacola de roupas limpas que eu trouxera. O tio continuava deitado na cama, contemplando o angustiante vazio de sua loucura. Havia um outro colega no quarto, dormindo.
Despedi-me rapidamente do tio e voltei para o saguão. O portão, no entanto, estava trancado. Segurei nas barras e chamei. Elevei a voz e os birutas ao redor excitaram-se. Todos me olharam. Alguns olhares eram divertidos, outros vazios, outros assustados, alguns hostis. Gritei. Ninguém apareceu. Somente muito tempo depois – dez minutos que pareceram uma eternidade - surgiu uma senhora do outro lado do portão. A tortura não terminou imediatamente após o surgimento da senhora. Eu a chamei e pedi que ela comunicasse a um dos médicos que eu estava preso ali. Ela me olhou de cima a baixo, e aquele olhar me deu calafrios. Ela estava me julgando. Enfim, perguntou, com um sorrisinho matreiro, se eu não era um interno.
A pergunta ecoou em mim várias vezes, como um insulto insuportável, uma ameaça perigosíssima. Ao responder, procurei transmitir o máximo de lucidez, firmeza e serenidade possível. “Não. Eu vim visitar meu tio.”
Ela deu-me as costas, sem responder e entrou numa sala. Saiu de lá em seguida e desceu as escadas, sem me dar atenção. Mas deve ter comentado com algum médico lá embaixo. Um deles subiu e, pedindo mil desculpas, abriu-me o portão.