O cachorro
“Aparentemente, ele está muito bem. Não vejo sinal de perturbação, afora o cansaço e um pouco de stress, claro. Quem não ficaria na situação dele?”
O psiquiatra empunhava cigarrilha na mão direita; com a outra folheava e comentava o relatório escrito por ele mesmo sobre o paciente. Orçava os setenta anos. Sobrancelhas grossas e voz ágil davam-lhe jovialidade que combinava com sua ironia constante. Seria capaz de transmitir a notícia mais terrível sem perder a expressão de homem do campo conversando galhofamente com um boi.
Sua interlocutora balançava a cabeça, contrariada. Usava um vestido negro que constratava com a maquiagem pesada, vulgar; batom vermelho vivo; lápis azul e negro ao redor dos belos olhos. Ajeitou-se na cadeira, olhou para baixo, para os lados, e falou com voz desesperada:
“Não pode ser, doutor Saad! Não pode ser! Eu juro!”, parecia que fosse chorar, mas controlou-se e assumiu uma postura firme. “O senhor tem que me ajudar”, declarou, mirando severamente nos olhos do outro.
O doutor Saad não se comoveu. Ao contrário, deu mostras de irritação com a insistência. Fez-se um silêncio hostil, e o doutor desviou o olhar para além da mulher.
Enfim, respondeu: “Me desculpe, senhora. Não posso fazer nada. Acredito no que a senhora disse. Mas seja o que for que ele tenha feito, não deixou marcas. Não tem importância”. Seu rosto desanuviou-se e, aos poucos, readquiriu as cores sardônicas de sempre. “Todos temos nossas excentricidades”.
“O senhor não pode imaginar a vergonha. Diante das minhas amigas! Que vexame!”, não se conteve e prorrompeu num choro convulsivo. O doutor girou a cadeira para trás e contemplou a vista. Podia ver os grandes navios de carga. singrando lentamente a baía. O marido desta senhora era o senador Procópio Guerra, líder dos conservadores. Apesar da má fama adquirida pelas inúmeras denúncias que se agarravam a ele como carrapatos numa vaca solta na roça, Guerra era estimado por amigos e adversários, devido a seu bom-humor inabalável e, sobretudo, por suas hilárias tiradas proferidas do alto do plenário. Uma vez respondeu a um agressivo colunista, que afirmara que o senador estava morto politicamente: “Se estou morto, irei puxar-lhe o pé todas as noites, dele e de seus patrões”.
A senhora parou de chorar e observava, desolada, o estrago que as lágrimas haviam feito na sua maquiagem. Segurava o espelhinho com uma mão e limpava com outra. De vez em quando vinha-lhe um soluço.
Uma onda de compaixão invadiu o psiquiatra. Logo lembrou-se, porém, de sambinhas antigos que falavam da malícia e falsidade das mulheres e controlou os sentimentos. Quem sabe ela não estaria mentindo? Exagerando, certamente.
“Se for o caso dele continuar fazendo o que você afirma que ele faz”, concedeu o doutor, embora sua voz traísse ceticismo. “Se for o caso, tente não dar bola. Finja que não está acontecendo nada. E diga aos outros para fazerem o mesmo”.
Ela ergueu-se, ofendida. Possuía tornozelos finos, observou o doutor. O senador era homem de sorte (a comparação com sua própria esposa era inevitável).
“Muito obrigado, doutor. Passe bem”, anunciou a mulher, com voz solene e dirigiu-se à porta. Antes de abri-la, voltou-se e acrescentou:
“O senhor é um covarde. Meu marido está louco, sim. Deveria ser internado. Isso não vai dar certo.”
Bateu a porta.
O doutor voltou-se novamente para a janela e observou um navio de carga passar por baixo do vão central da ponte Rio-Niterói. O que ele tinha a ver com isso? Era evidente que o homem tinha problemas mentais. Quem não tem? Mas ele conseguia trabalhar, aparentemente. Isso é o que importa.
O doutor bebia café na varanda de seu apartamento, quando ouviu um grito.
“Que foi, meu bem?”
“Vem, vem, vem!”
Ele levantou-se, entediado, pronto para assistir um escândalo sobre alguma celebridade da indústria pop. A mulher olhava a tela plana como que hipnotizada, com expressão perplexa e risonha.
“Vem, vem, eles vão repetir a cena!”
A tv mostrava a sala principal de conferências da Organização das Nações Unidas. Um apresentador dizia em inglês:
“We have the honour to call here Mr. Procópio Guerra, representant of the Brazilian Senate.”
Nesse momento, ouve-se um burburinho na sala da ONU. Um vulto vem vindo pelo corredor entre os assentos. Logo se distingue que era um homem. Ele se locomove com pernas e braços no chão, de quatro. E parece latir! Sim, ele late. A câmera se aproxima e dá um close no senador Guerra latindo como um doido, enquanto corre na direção da tribuna, onde sobe, ou melhor, salta, põe as patas sobre a prancheta dos discursos e late furiosamente ao microfone!