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O corredor

Sempre gostei de correr, mas sabe como é, trabalho, cerveja, sono pesado, preguiça, essas coisas todas acabaram por conspirar para que eu interrompesse por longos anos minhas amadas corridas matinais. O tempo foi passando, casei-me, tive que trabalhar ainda mais, acordar mais cedo, o stress aumentou, e as cervejadas, apesar de mais espaçadas, por falta de tempo, ou mesmo por causa disso, ficaram mais extensas, causando, no dia seguinte, ressacas terríveis, que não estimulavam em nada meus exercícios.

Bem, o negócio é que nunca mais corri, e o resultado foi desastroso: engordei vinte quilos, arrumei uma série de problemas de saúde e, por fim, sem que isso seja uma conexão lógica, mas que há uma relação eu sei que há, meu casamento desandou.

Já divorciado, vim morar no Bairro de Fátima, onde os aluguéis são os mais baratos da cidade - não é mole dar um terço da renda para a ex-mulher. Numa noite de cervejada, no bar do Mineiro, fui convidado para uma festa ali mesmo em Santa Teresa. Paguei a conta, levantei-me e fui. Chegando lá, tranquilizei-me ao ver que havia gente da minha idade (tenho quarenta e dois) e me dirigi ao bar.

Ela devia ter uns vinte e cinco anos, e era linda. Conhecia-me de nome, disse que admirava meu trabalho à frente do instituto e, papo vem, papo vai, fomos dançar.
Foi então que me dei conta do tamanho monstruoso da minha barriga. Conforme eu dançava, ela balançava indecorosamente, além de quase me fazer perder o equilíbrio por duas vezes. Não pude continuar. Deixei a linda moça dançando sozinha e voltei ao bar, disposto a encher a cara para afogar minha gordurosa tristeza.

Decidi voltar a correr.

Não no dia seguinte, porque acordei com ressaca, mas no dia posterior. Pulei da cama às seis horas da manhã, tomei um suco de laranja e, devidamente trajado para a ocasião (tênis, calça de moletom, camiseta branca), saí de casa.
A primeira parte do percurso fiz caminhando. Desci a Riachuelo, que estava cheia de gente indo pro trabalho, atravessei os Arcos da Lapa, segui pela rua da Glória, depois rua do Catete, entrei numa transversal ao lado do Museu da República, atravessei as pistas da Praia do Flamengo e subi a passarela que passa sobre as avenidas do Aterro. Cheguei ao Parque do Flamengo e aumentei a marcha. Comecei com um cooper suave e logo estava verdadeiramente correndo. Tomei o sentido do Obelisco, à minha direita, onde fica o restaurante Porcão.
Muitas outras pessoas corriam ou andavam. Engraçado ver aqueles senhores barrigudos caminhando: era quase óbvio que vinham por ordem médica. Podia imaginar o médico dizendo a eles: "O senhor precisa fazer regime, evitar gorduras, e caminhar diariamente no mínimo dois quilômetros".

Como há tempos não corria, fiquei exausto em menos de meia hora. Mas resisti e ainda corri mais um pouco, até que me joguei, sem forças, num gramado ao lado da pista.

Assim terminou o meu primeiro dia de corrida.
Os músculos doíam-me tanto no dia seguinte que fui obrigado a esperar uma semana para voltar a correr. Na segunda-feira seguinte, num belo dia de primavera, portanto, lá estava eu novamente no Parque do Flamengo, correndo. Mesmo sem ter testado a balança, algo me fazia crer que já tinha perdido alguns quilos.

Para me estimular pensava na mulher que conhecera na festa. Depois que perdesse esta indecente barriga, gostaria de reencontrá-la. Ela dissera-me que também gostava de frequentar o Mineiro, e isso me deu esperanças de que poderia topar com ela lá em qualquer noite dessas.

Desta vez, passei pela primeira passarela do Aterro, a que dá no Museu de Arte Moderna e na Marina da Glória. Decidi fazer um caminho diferente e tomei o sentido do aeroporto Santos Dumont. A barriga sacudia pra cima e pra baixo, mas eu não ligava. Um colega do trabalho perguntou-me se eu não achava mais prático fazer uma cirurgia de redução do estômago. Eu expliquei a ele que a questão não era só a perda de peso. Eu precisava resgatar o hábito de fazer exercícios. E nada melhor que correr, que eu gostava tanto. Correndo, meus pensamentos voavam, livres.

Chegara no aeroporto, entrara pelo promontório artificial que se estende uns cinquenta metros dentro da baía – o qual foi quase destruído por uma ressaca alguns anos atrás - ao fim do qual contemplei uma bela paisagem: a Igreja da Nossa Senhora da Glória, ao fundo, no alto do monte; a praia do Flamengo; o Redentor; e o Pão de Açúcar à minha esquerda. Parei um instante para absorver aquela beleza e agradecer mais uma vez a Deus pela cidade maravilhosa em que nasci.

Estava nesse ponto quando vi, lá no início do promontório (aliás não sei nem se o nome certo é esse mesmo, promontório, mas por enquanto fica assim), um sujeito com trajes bem parecidos com o meu, da mesma cor. Ele também estava parado, como que a me olhar.

De repente, ele deu meia volta e dispara na direção do aeroporto.
Tratava-se de um episódio sem importância e eu não lhe dei importância. Comprei uma água mineral, descansei um pouco, e peguei o caminho de volta, andando.

No dia seguinte, lá estou eu a correr novamente. Desta vez, ia levemente preocupado com o indivíduo da véspera. Volta e meia olhava pra trás, buscando vê-lo. Certa hora, tomei um susto horrível ao avistar, na pista da praia (eu corria na pista de dentro), um sujeito que me pareceu ser ele. Mas foi alarme falso.

Não corri por muito tempo. Estava bem cansado. Voltei caminhando. Quando cheguei a uns cinquenta metros do meu prédio, parei assustado. O tal indivíduo estava diante da portaria do meu edifício, olhando-me.

Aproximei-me cauteloso. Ele ainda vestia as mesas roupas que eu. Só falta essa, pensei, um maluco que me persegue e me imita. O estranho era que ele também era bastante parecido comigo. Estava agora junto dele, mas ele não me olhava, fingia estar esperando alguém, sei lá. Estava em pé, parado como um espantalho. Decidi dar um fim naquela palhaçada. Dirigi-me a ele:

- Com licença, senhor. O senhor também corre no Aterro?

Ele me olhou de alto a baixo; um olhar cruel, cheio de desprezo, que me feriu os brios, e não abriu a boca. Abalado e meio fora de mim, insisti na pergunta:

- Eu tenho certeza que vi o senhor no Aterro e depois no Museu de Arte Moderna, ontem. Não foi?

O zelador, acompanhado de um morador, saíram de onde estavam, na mesa da portaria e me abordaram. Tinham uma expressão preocupada.

- Seu Adolfo, o senhor está bem?

Olhei pra eles, ainda irritado com a indiferença de meu interlocutor. Como um sujeito pode nos seguir por dias seguidos, vestindo as mesmas roupas, e depois não se dignar a responder a uma simples e inocente pergunta? Falei com ele ainda outra vez.

- O senhor está ouvindo? É surdo?

O porteiro e o morador se entreolharam. Escutei alguém, lá de dentro do prédio, falar algo como “Ih, ele surtou!”. Era uma moça que também observava a cena do hall do elevador.

Perdi o controle e gritei:

- O SENHOR QUER FAZER O FAVOR DE ME RESPONDER! EU O VI ME SEGUINDO NA SEMANA PASSADA E ONTEM. E DEPOIS O VI NO MUSEU DE ARTE MODERNA. QUEM É VOCÊ? QUE QUER DE MIM?

Finalmente, o indivíduo se virou lentamente, abriu a boca, voltou a fechá-la, depois abriu de novo e disse, sílaba por sílaba:

- Eu não sou ninguém. Eu não existo, seu otário. Você enlouqueceu.

Foi assim que perdi minha lucidez. Hoje estou internado numa instituição psiquiátrica em Jacarepaguá, tentando me livrar do maldito sujeito que fica me seguindo e usando as mesmas roupas que eu.

De vez em quando, esqueço que ele não existe, e ponho-me a xingá-lo descontroladamente, ao que ele me responde apenas com um frio olhar de desprezo.

Graças a Deus, a clínica tem um enorme jardim, onde eu posso correr diariamente. Já perdi os vinte quilos adicionais que tanto me incomodavam e, assim que me livrar definitivamente daquele FILHO-DA-PUTA IMITÃO, quero encontrar de novo a mulher linda com quem eu dancei naquela festa.