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Índios

Olhando a chuva pela janela, Adriana pensava em como seria bom continuar na cama, lendo o jornal, tomando café, espreguiçando-se a manhã inteira. Mas era dia de semana e tinha que trabalhar. Exorcisou a preguiça e levantou-se num pulo. Helena tomava o café na cozinha, sentada à mesa, concentrada num livro.

- Bom dia, Helena. Já lendo essa hora?
- Bom dia. Esse livro é muuuito bom! Tô no finalzinho. Quero terminar antes de ir pro trabalho.
- Ok. Esse café tá novo?
- Acabei de fazer.

Adriana serviu-se uma xícara de café e foi pra sala. Ligou a televisão para assistir, como de hábito, ao jornal da manhã. O âncora informava que diversas tribos indígenas haviam decidido realizar um grande encontro no Rio. O encontro fora planejado em sigilo e algumas autoridades estavam apreensivas em relação ao tipo de manifestação que os índios estariam dispostos a fazer. Nas cidades próximas às tribos, era comum os índios invadirem repartições, prendendo os funcionários, com o objetivo de pressionar o poder público para que atendesse suas reivindicações. Essa estratégia, porém, não estava mais dando certo, até porque o governo havia transferido os funcionários mais graduados da Funai para capitais distantes das áreas indígenas. Ao mesmo tempo, contava o âncora, exibindo depois um trecho de entrevista com um cacique, crescia a revolta entre os índios, porque, segundo alegavam, suas terras vinham sendo invadidas por madeireiras, mineradoras e plantações de soja.

A campainha tocou. A essa hora, pensou Adriana, só podia ser o porteiro trazendo uma correspondência urgente. Não era. Pelo olho mágico, reconheceu o vizinho, Seu Afonsinho, com cara de preocupado.

- Bom dia, seu Alfonsinho. Aconteceu alguma coisa?
- Você não ouviu nada estranho ontem à noite?
- Não, por quê?
- Ontem de madrugada, escutei um grito horrível vindo do 701. Sei que era do 701 porque reconheci a voz do moço que mora lá. Resolvi esperar até de manhã para checar o que havia acontecido. Não queria incomodar por bobagem. Ele podia ter batido o martelo no dedo, alguma coisa assim, não é? Mas hoje de manhã toquei lá e ninguém atendeu.
- Humm, quem mora lá é aquele rapaz alto, de cabelo comprido, né?
- É sim, tenho certeza que o grito veio de lá.
- Será que não foi um pesadelo? Digo, um pesadelo dele, que o fez acordar gritando?
- Talvez, mas é estranho que ninguém atenda a campainha. O porteiro da noite disse que ele não saiu do prédio. O turno desse porteiro começa às três horas da madrugada e vai até as nove horas da manhã. Ele teria visto se o rapaz tivesse saído do edifício.
- Será que o porteiro não tirou um cochilo...
- Ele jura que não, mas de qualquer forma, eu pedi pra checar nos vídeos do elevador e da entrada. Ele acaba de me interfonar dizendo que, de fato, o rapaz não saiu à noite.
- Que é que aconteceu? – Helena tinha escutado a conversa e estava de pé na sala, uma xícara de café numa das mãos e o livro na outra.
- Seu Alfonsinho acha que aconteceu alguma coisa no 701 – respondeu Adriana.
- Já tocou lá?
- Ninguém atende – disse Seu Alfonsinho, acrescentando com um jeito sombrio: – vou chamar a polícia.

Algumas horas depois, sentada à mesa de seu escritório no centro, Adriana pensava no episódio da manhã sem grande apreensão. Seu Alfonsinho, síndico do pequeno edifício de quatro andares na rua Monte Alegre, tinha fama de paranóico. Que significava um grito? O rapaz podia muito bem estar transando com a namorada (ou namorado) e ter gritado na hora do orgasmo, pensou Adriana com volúpia, imaginando a si própria na cama com o jovem vizinho. Podia simplesmente ser um grito sem nenhum sentido, absurdo. E daí? Não se pode mais gritar em paz hoje em dia? Uma das coisas que mais a impressionara no documentário sobre os índios Xingu, reprisado pela Manchete há algumas semanas, foi que o índio podia dar um berro no meio da aldeia, a qualquer hora do dia ou da noite, sem que ninguém fosse lhe perguntar porque tinha feito isso. Se isso não é liberdade, o que é então? Empanturrar-se de hamburguers num drive-in? Ficou tão distraída pensando nisso que demorou uns segundos para escutar o telefone tocando. Era Seu Alfonsinho.

- Alô, dona Adriana. Desculpe te incomodar aí no seu trabalho. Tô ligando pra contar o que aconteceu. Uma tragédia, minha filha. Achei melhor você saber logo pra não se assustar quando voltar pra casa. A polícia interditou quase todo o andar. Você vai ter que pegar o elevador dos fundos e entrar em casa pela porta da cozinha.

- Que houve seu Alfonsinho? Fala logo pelo amor de Deus!
- A polícia veio e arrombou a porta do 701. Você não pode imaginar.

Marcaram encontro às oito horas num restaurante em Santa Teresa. Adriana ligou para o celular de Helena e contou sobre o crime. Decidiram jantar fora e, se possível, dormir na casa de uma amiga ou mesmo num hotel. Não queriam nenhuma proximidade com aquela atrocidade. De acordo com o relato de Seu Alfonsinho, o corpo do vizinho estava terrivelmente mutilado. Os peritos concluíram que a vítima fora barbaramente torturada antes de morrer. Estava muito bem amordaçado, com uma bola de borracha dentro da boca. Em algum momento, porém, deve ter conseguido se livrar da mordaça e gritado. O assassino o matou em seguida, de acordo com a teoria da polícia.
Naturalmente, não foi um dos jantares mais agradáveis. A sombra do crime pairava como um fantasma em torno delas. Adriana não tinha contado à amiga todos os detalhes do crime, fornecidos pelo minucioso relato que lhe fizera Seu Alfonsinho ao telefone. Evitaram tocar no assunto durante a refeição. Na verdade, procuraram esquecê-lo completamente. Terminado o jantar, Adriana pediu caipirinha e ligou para vários amigos e amigas, chamando-os para o bar. Em algumas horas, as duas estavam bêbadas e felizes e inocentes. Quatro ou cinco amigos atenderam o chamado. Adriana contou, superficialmente, o que havia acontecido no edifício e pediu que não voltassem a tocar no assunto. Um deles ofereceu o apartamento para que elas passassem a noite.
Esse amigo chamava-se Heráclito e escrevia reportagens para uma revista de turismo. Levou-as para sua casa em seu carro, Adriana no carona e Helena atrás, segurando uma garrafa de vinho e remexendo-se ao som do toca-disco. Chegaram à casa de Heráclito às duas e meia da manhã. Ele morava num edifício enorme, na Gávea, com os três primeiros andares ocupados por um grande estacionamento privativo. O carro entrou pela portaria, subiu um andar, subiu outro e chegou ao terceiro pavimento. A escuridão no estacionamento abalou o humor das duas amigas.

- Esse lugar é assustador! – disse Helena, com voz arrastada. Sentia-se tonta e tudo que queria agora era esticar-se num sofá, beber muita água e comer alguma coisa doce.

Entraram no elevador, chegaram ao décimo quinto andar. No corredor, um grito pavoroso fez com que elas gritassem também de susto. Heráclito também assustou-se. Tratou de abrir a porta do apartamento, trancá-la bem trancada e foi interfonar ao zelador, para contar o que tinha acontecido. O interfone não funcionou.

- O que está acontecendo? – Helena perguntou, aérea, enquanto estudava o bar da casa, à procura de uma bebida bem forte que a fizesse desmaiar de vez e esquecer o mundo.
- Não sei, o interfone está estragado. Que grito estranho! Acho que vou chamar a polícia.
O telefone estava mudo.

Heráclito olhou confuso para as duas amigas. Não sabia o que fazer, nem o que dizer. Foi ao bar, onde Helena já estava instalada bebericando um uísque sem gelo, e se serviu do mesmo. Adriana observou os dois bebendo como se ficar bêbado fosse a solução mais inteligente. Disse:
- Vocês não podem ficar aí bebendo. A gente tem que fazer alguma coisa.

Os dois nem se dignaram a olhar pra ela. Continuaram a fazer o que estavam fazendo.

Alguém bate à porta.

- Vocês ouviram isso? – pergunta Adriana. Os dois continuam em silêncio. Ela vai até a porta e abre a janelinha para ver quem era. Quando vê o que há lá fora dá um grito de horror, fecha a janelinha e corre até onde estão os dois amigos, agora já não tão absortos. Heráclito tem as sombrancelhas franzidas, como se refletisse profundamente.

- Quem está lá fora? - pergunta ele.
- Vá lá ver. É horrível. Inacreditável.

Mais batidas. Heráclito dá um gole mais forte e vai até lá. No caminho, lembra-se de seu celular e dá um tapa na testa, como quem se auto-acusa de estupidez. Resolve dar uma olhada rápida pela janelinha da porta antes de chamar a polícia.

Lá fora, dois índios muito altos e musculosos, com pintura de guerra em todo o corpo, enormes facas penduradas na cintura, seguram, cada um, uma cabeça ensanguentada.

Pelo celular, Heráclito liga apressadamente para 190 e fala com a atendente.
- Pelo amor de Deus, mande uma patrulha aqui. Tem dois índios no prédio matando as pessoas.
- Meu senhor, sinto lhe informar, mas o senhor terá que aguardar. Estamos recebendo o mesmo tipo de chamada por toda a cidade. Acho que está havendo um grande ataque dos índios ao Rio de Janeiro. Ou então é um grande trote.
- Não é trote, estou vendo os índios pela janelinha da porta.
- Acredito no senhor. Estou registrando sua reclamação. Estaremos enviando uma patrulha assim que for possivel.

Um dos índios (Heráclito via tudo pela janelinha) pega uma machadinha numa sacola pendurada às suas costas e começa a destruir a porta.