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Biografia barata

Estão dizendo que a teoria do Big Bang escrita por aquele cientista inglês é falsa. Quer dizer, essa história de que o universo teve um nascimento, através de uma explosão de um corpo hiper-concentrado, cujos detritos espalharam-se pelo espaço, formando as galáxias, contém lacunas demais para fazer algum sentido. De qualquer forma, mesmo que fosse verdadeira, e aí? O mistério continua: antes da explosão, havia o quê?

Eu fico pensando isso diante de meu pai, silencioso em seu caixão de madeira barata, rodeado de amigos e parentes; vou pensando em todos os grandes enigmas da humanidade, ainda tão misteriosos quanto há dez mil anos. Meu pai era ateu. Mas renunciara ao comunismo, desde que a Tchecoslováquia foi brutalmente agredida pela Rússia nos anos 60. Quando a face perversa do stalinismo russo tornou-se amplamente conhecida, ele converteu-se num dócil e tolerante social-democrata.

Na época de FHC, costumávamos discutir apaixonadamente sobre política, embora com um respeito mútuo tão profundo que nunca houve qualquer vestígio de rancor ou ressentimento entre nós. Ele defendia ardorosamente o governo FHC, o que eu não podia compreender. Hoje eu penso que ele estava cansado de odiar e reclamar. Talvez sentisse a proximidade da morte e queria viver os últimos anos de sua vida com alguma esperança no país e no mundo.

Meu pai não era um homem moderno. Foi duro ensinar a ele todos os macetes de computador que ele precisava saber para poder trabalhar como jornalista. Certa vez, tive um ataque de riso que durou meses ao descobrir a extensão de sua ignorância. Até hoje acho essa história inacreditável. Estávamos no sítio de Friburgo. Ele preparava um churrasco, como de costume e, distraidamente, soltou a bomba. Na verdade, eu o induzi a tal afirmação, fazendo algumas perguntas estratégicas. Enfim, ele pensava que vírus de computador era um vírus de verdade, um ser orgânico, uma ameaça biológica, ou fungo, que estragava as máquinas. Aliás, pensando bem, talvez no futuro esse tipo de coisa possa até existir.

Essa história, porém, não é sobre meu pai. Ele faz parte da minha história, naturalmente, mas o personagem principal sou eu mesmo. Sei que muitos de vocês estão enjoados de romances na primeira pessoa. Eu mesmo já li diversas críticas sobre a obsessão dos novos escritores para com seu próprio umbigo. Já tentei escrever de outras formas e não deu certo. Talvez, mentindo um pouco, aqui e ali, consiga me libertar da minha própria história, que não tem nada de emocionante.

Minto. Como pude escrever tamanha bobagem? Como pode não ser emocionante uma história com um assassinato e um filho acusado de matar o próprio pai? O processo ainda corre na Justiça e aguardo o final da investigação em liberdade.

Essa suspeita, divulgada em todos os jornais, acabou com minha vida social. Ninguém me convida mais a festas, meus amigos não querem mais nenhum contato comigo. Raquel, minha namorada, pediu "um tempo".

Antes de mais nada, quero assegurar a vocês que tudo não passa de uma grande armadilha arquitetada por alguns parentes inescrupulosos que pretendem usurpar a herança do meu pai, e assumir a direção do jornal do qual ele era o sócio-majoritário.