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O Apokálypsis segundo Raphael Widão

Esta crônica, escrita por Antonius Vanquise III, foi publicada na Coluna Bagatongas do site Andrômedas do Passado, no ano 5.201 DC.

Às vezes, ao acordar, imagino ouvir o canto de pássaros de verdade. Esqueço que estamos no ano de 5.201 e não existem mais pássaros na Terra. Até o terceiro milênio, algumas Províncias mantinham áreas florestais altamente protegidas, onde viviam diversas espécies de animais selvagens, pássaros incluídos. Com o tempo, porém, verificou-se que essas florestas estavam se tornando verdadeiros criadouros de vírus e foram proibidas. As espécies animais foram catalogadas, congeladas e hoje apenas alguns exemplares mais interessantes são mantidos vivos nos laboratórios secretos do Ministério Mundial de Pesquisa e Ciência.
Mas a literatura e o cinema não nos deixam esquecer de nosso passado idílico, quando homens conviviam com plantas e animais sem medo de pragas ou doenças. Eu mesmo sou um aficcionado pela arte antiga, sobretudo do início do segundo milênio. É fascinante observar como o ser humano da época, mesmo com o escasso tempo livre que o trabalho e os afazeres domésticos lhe permitia, ainda sim conseguia produzir boa literatura.

O que me intriga mais é constatar que, mesmo com tão poucos recursos tecnológicos - a internet estava em seus primórdios - eles eram tão parecidos com os homens de hoje, tão sentimentais, cínicos, irônicos, desastrados e ambiciosos. A diferença fundamental entre o homem do passado e o de hoje está muito mais no tipo de organização social e política. A humanidade era dividida em países, com governos e culturas diferentes ou mesmo divergentes entre si. Essas divergências frequentemente se convertiam em hostilidade e guerra.

Aliás, foi justamente uma guerra que provocou a primeira grande catástrofe humana do segundo milênio. Uma das potências militares de então, os Estados Unidos, atacou o Irã, importante produtor de petróleo, principal combustível da época, deflagrando um conflito de proporções crescentes que aniquilou dois terços da população global e mergulhou o mundo em séculos de trevas culturais e políticas.

Prezados leitores, vocês sabem que, pouco antes desta catástrofe ocorrer, a maior parte da humanidade vivia em paz e harmonia, apesar da grande pobreza que afligia milhões. Num país chamado Brasil, onde hoje fica a Província Global Paralelo Sul 25, havia um grupo de escritores que participava de uma revista que marcou época, exercendo significativa influência sobre os rumos da literatura mundial. Há mesmo quem afirme que o peso cultural da Bagatongas (título da revista) foi determinante nas votações internacionais que escolheram o português como língua oficial da humanidade.

Bagatongas era um site e uma publicação impressa, editados por Raphael Widão, jovem carioca (ou seja, nascido na cidade do Rio de Janeiro) que conseguiu superar a miséria, a fome e uma terrível doença para tornar-se um dos mais poderosos intelectos do segundo milênio.
Aliás, vale algumas palavras sobre este curioso personagem. Além de criador da Bagatongas, Widão foi autor de vários livros de enorme reconhecimento de crítica e público, entre eles o Cagalhão, sua primeira obra. Em sua auto-biografia, escrita aos noventa e cinco anos, Widão revelou que o principal motivo para a criação da revista Bagatongas foi uma visão aterradora do apocalipse. Mikail do Corsário, que escreveu um biografia romanceada de Widão, confirma esta informação. O testemunho de Corsário, mesmo que romanceado, é importante porque escritores mentem muito, especialmente em suas biografias.

Corsário conta que Widão tinha uma rara doença em que pés e mãos não parávam de crescer. Ao fim de sua longa vida, Widão possuía um pé cujo comprimento era quase o mesmo que sua altura, e mãos do tamanho de um carro de passeio. Mas ele nunca deixou que esse problema o impedisse de fazer qualquer coisa, inclusive sair para beber com seus companheiros da revista.

A visão apocalíptica de Widão nunca foi levada à sério por seus amigos. Em seu romance, Corsário fala sobre o dom profético do criador da Bagatongas.

"Nós não acreditávamos nessa história de apocalipse que o Widão nos contava, pois ele era um grande sacana e, além do mais, quem iria acreditar numa porra dessa? Segundo ele, haveria uma guerra terrível que mergulharia o mundo nas trevas por séculos. Por isso, dizia ele, é necessário registrarmos a nossa história, nossa cultura, através da literatura, para que, no futuro distante, talvez daqui a milhares de anos, quando a civilização humana for reconstruída, ela, a humanidade, possa ter uma documentação abundante de nossa vida atual. Fazer arte é lutar contra a extinção do homen no universo, completava Widão, para delírio nosso, que considerávamos esse papo uma grandiosa e genial piada surrealista. Como ele era profético e como éramos ingênuos! Nunca imaginaríamos que o homem pudesse cavar, para si, um buraco tão profundo e fétido, e se enterrar ali voluntariamente, como um louco ou um idiota."

Bem, chego ao final desta crônica dizendo o que vocês, provavelmente, já desconfiavam. O nome da minha coluna semanal é uma homenagem a esta revista dos tempos antigos. A Bagatongas do passado tem sido uma das minhas maiores fontes de inspiração. Os arquivos do site ainda estão no ar, no endereço Bagatongas.net. Acessem e leiam as colunas de Raphael Widão, Luciano Inácio Lula da Silva, Marciano Calypso, Camilla Chopes, Tatiana Palloci, Augusto César Correia, e de todos os outros participantes desta revista que não só mudou o passado - como todos os clássicos, continua mudando o presente e o futuro.