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Asa Delta

Sentindo o cano frio da pistola pressionar-lhe a nuca, Danuza olha a cidade lá embaixo e lembra como tudo era antes, há quarenta anos. Ainda não havia o Aterro, andava-se de bonde por toda parte e a revista Grande Hotel era esperada ansiosamente por ela e suas irmãs. Como deixamos a cidade apodrecer dessa maneira?, pensa Danuza, enquanto tenta adivinhar o motivo pelo qual o bandido não atirava.

A família havia se recusado a pagar o sequestro. Será que me preferem morta? Viu uma asa delta cruzar o céu . Que fim lamentável, héin, dona Danuza, diz para si mesma e seus olhos se enchem de lágrimas. É que se recordara de seu grande amor, Paulinho, que morrera aos vinte e oito anos, atropelado por um bonde. Isso foi há muito tempo. Ela tinha sessenta agora, apesar de suas amigas jurarem que não aparentava ter mais de quarenta e cinco. Mantinha a forma caminhando diariamente no Aterro e fazendo hidroginástica. Paulinho cursava Direito mas sua paixão era a música. Enfiava-se nas rodas de samba de toda a parte da cidade. Ela o acompanhou diversas vezes nessas rodas, e foi aí que aprendeu a dar valor à cultura popular. Seus pais foram pessoas conservadoras, sobretudo o pai, seu Alberto, um juiz aposentado que não apreciava nada que fosse produzido pelo povo. Por causa disso, inclusive, é que ele não gostara de Paulinho desde a primeira vez em que ele foi à casa da namorada. Paulinho confessara que considerava a obra de Cartola, Noel Rosa e Pixinguinha mais relevante, para o homem brasileiro, do que Mozart, Beethoven, ou o jazz americano.

Seu Alberto não se importou com a referência ao jazz, do qual também não gostava, mas achou impertinente a comparação com a música clássica. Não era razão para brigar, e talvez, no fundo, a antipatia de seu Alberto tenha se originado em outros fatores, como a pele quase escura de Paulinho e sua tendência a rir de assuntos sérios, como a expansão comunista no país. Além de ser flamenguista: seu Alberto era vascaíno doente e achava que todo rubro-negro era mau-caráter.
O bandido continuava pressionando o cano da arma na cabeça de Danuza, silencioso. Com o rabo do olho, Danuza reparou que ele segurava o celular com a mão esquerda, como se esperasse ansiosamente uma ligação da família da vítima. As poucas nuvens estavam excepcionalmente brancas e assemelhavam-se a roupas estendidas num varal invisível. Vindo por trás do morro, passando sobre eles, um bando de andorinhas voou na direção do grande vão entre as montanhas da Tijuca e a baía de Guanabara.

Após o golpe de 64, Paulinho começou a se envolver com política e a se afastar de Danuza. O amor dela, ironicamente, eclodiu com violência justamente nesse período. Uma de suas amigas disse que ela estava era com amor-próprio ferido, pois Paulinho sempre se mostrara extremamente apaixonado e ela nunca dera mostras convincentes de lhe corresponder. Agora, que ele tinha outros interesses, ela sentia-se diminuída.

Danuza admitiu a si própria que a amiga tinha um pouco de razão, mas só em parte. O fato é que, assim como Paulinho havia amadurecido rapidamente durante a primeira metade dos anos 60, atingindo um agudo grau de consciência política, ela também crescera; e aprendera a amar Paulo por tudo que ele era e por tudo que havia ensinado a ela.

O atropelamento que o matou aconteceu durante uma perseguição policial. Paulinho se tornara membro de uma organização revolucionária que pregava a resistência armada ao regime militar. Nas raras vezes em que se encontraram, bem que ela tentara dissuadi-lo a abandonar a política e levar uma vida normal. Não será pelas armas que vocês vão mudar o Brasil, dizia ela; em outros países, em outras épocas, pode ter dado certo, mas aqui não.

O celular do bandido tocou. Danuza escutou-o falar com alguém de sua família. Não sentia mais o cano frio da arma em sua nunca.

Aí, madame, seu filho falou que conseguiu o dinheiro. Vamo descer o morro. Foi por pouco, héin, dona? Eu só não atirei porque me distraí olhando aquela asa delta. Sou fascinado por isso. Desde moleque, ficava viajando, do alto do morro, nas asa deltas que passavam. Me imaginava numa delas, voando por aí, livre como um pássaro. Por isso não atirei. Não queria estragar o sonho vendo o sangue de sua cabeça espirrar em mim.