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As putas também amam

Os olhos claros de João fixam-se no espelho, os olhos claros fixam-se no reflexo, no reflexo do espelho, do espelho caralho. Não quer dar um soco no espelho? Rebentar tudo?

João pega uma enorme faca, não tinha outra, para arrancar o lacre da garrafa. Está nervoso, apressado, e corta o dedo. Um pedaço de carne voa e cai sobre a mesa. Olha perplexo para a mão e vê que falta uma parte. O sangue demora alguns segundos para começar a fluir aos borbotões. Faz um curativo com fita crepe. Improvisado, mas eficiente. Abre a cachaça e pega um copo. Dor, dorzinha, dor de criança. Toma um longo trago.

Escuta a marchinha de carnaval. O bloco passa lá embaixo. Tão jovem! A vida inteira pela frente! Tão formidavelmente solitário! O pau lateja suavemente, como que a mostrar sua presença. Não transa há... quanto tempo? Três meses? Fizera uma promessa: não ia mais tocar punheta. Tinha lido em algum lugar que a punheta deixa o cara resignado, paradão, sem aquela vontade imperiosa de correr atrás de uma mulher de verdade. Devorava com os olhos as moças que via na rua. Teve que fazer um esforço sobre-humano para não dar em cima da mulher do Walter, aquela piranhinha gostosa. Por que uma mulher vai na casa de um amigo de seu marido, às dez horas da noite, vestindo uma minissaia que mais parece um cinto? João olhou novamente o reflexo no espelho, tentando ver a si mesmo como um estranho. Era assim que os outros o viam? Era assim que Lúcia o via?

Toma um susto com as batidas na porta. O interfone da portaria estava quebrado, e ainda tinham a cara-de-pau de cobrar uma taxa de condomínio de cento e vinte reais! Ia entregar o apartamento, não tinha dinheiro para o aluguel. Seu pai morrera, a mãe estava doente, morando com a irmã no subúrbio. E ele também tinha sua dignidade. Não ia bater na porta de ninguém, que nem mendigo, pedindo comida. Cumprimentou Lúcia com aflição. Ela tinha peitões macios, que sentiu na hora do abraço. Ficou de pau duro. Ela percebeu e esfregou-se nele com mais força.

Que história contou aos amigos no boteco? Uma mentira? Comeu a Lúcia, no chão do kitnet, afastando jornais e livros com os pés. Não! Isso foi sonho! O espelho olha João. Ele desperta do transe. Enche outro copo de cachaça e bebe. Lúcia foi embora, magoada porque ele não a quis. Porra, era mulher de seu melhor amigo! Não dava! A imagem do rosto de Walter atormentá-lo-ia e talvez nem conseguisse uma ereção. Ah, mas ela é tão gostosa. O bloco de carnaval tocava na esquina. Veste uma camisa, toma outra dose e sai. Estava com seis meses de aluguel atrasado e o proprietário ameaçou aparecer com a polícia a qualquer momento. Olha o punho fechado, trêmulo, e olha a si próprio, no espelho, olha a si próprio dar um soco no espelho, porra. Alguma coisa dá errado. O punho atravessa o espelho sem encontrar um fundo firme. Um caco rasga-lhe o pulso. O sangue espirra. Ah, Lúcia, por que não lhe beijei a boca? Ou será que beijou? Está bêbado? Não se recorda que ela, loucamente, tirou a camisa, mostrando os peitos, peitões enormes, siliconizados será? Não. Eram moles, caídos. Naturais. Não deu soco nenhum, isso sim foi pesadelo. Olhou os pulsos, intactos.

No elevador, encontra o único vizinho com quem costuma trocar algumas frases. Era baixo e gordinho, fantasiado de prostituta. Muito engraçado. A saia curta descobre-lhe as pernas cabeludas. Pergunta a João, sorrindo, se sabia da novidade. Que tinham prendido o assassino. O que matou o rapaz do décimo primeiro andar. Não, não sabia. Pois é, diz o vizinho, prenderam. E sabe quem era? A loura do onze. Não! Juro! A loura? Sim, a loura. Era amante dele. Parece que ele ameaçou abandoná-la, ou tinha arrumado outra e ela ficou sabendo. A polícia achou a arma do crime, um facão de cozinha, e uma testemunha disse que viu, pelo olho mágico, quando ela arrastou o corpo para fora do apartamento, e o deixou largado no corredor, ainda vivo, sangrando como um porco. João olha os pulsos e vê sangue. Quase grita. Olha o vizinho, que conta mais detalhes do caso. Descobriram que a loura era prostituta em Copacabana, numa boate chique, e ele era cafetão de vários travestis aqui da Glória. E traficante também. Olha os pulsos de novo e não há nada.

Pergunta ao vizinho se estava indo curtir o bloco da esquina. Sim, vou dar um tempo ali, depois vou para outro bloco. Depois pra outro, até não aguentar mais e dormir num banco de praça, acordar e continuar dançando. Até acabar o dinheiro. Ou eu morrer. Ou o mundo acabar. Posso ficar com você?, perguntou João. Mas claro, disse o vizinho. Se você pagar sua cerveja, que hoje só pago pra mulher. Tudo bem, eu tenho dinheiro pra cerveja. Não tenho é pro aluguel. Estou abandonando o apartamento. Já vendi tudo, levei as roupas pra casa de um amigo e agora estou saindo pra nunca mais voltar. Na esquina, o bloco toca marchinhas de carnaval. Olha os pulsos, não sangram mais. Nunca tinham sangrado. Mas o curativo de fita crepe no dedo continua lá. Lúcia é uma gostosa. Devia ter comido.