A revelação
Diante do estrondoso sucesso do best seller de Jonh Draw, “O Filho de Jesus”, as autoridades eclesiásticas decidiram que já era hora dar fim às mentiras e distorções levantadas pelo livro. O mais grave era que o autor afirmava, em entrevistas, que seu romance era verídico e baseado em pesquisas históricas, embora não revelasse as fontes.
Chamo-me João Paulo dos Santos Reis e, até ano passado, era um católico fervoroso e, digamos, profissional, visto que, como historiador, era membro do quadro de pesquisadores do Vaticano. Minha especialidade consistia em procurar, em livros antigos e modernos, quaisquer referências à história da vida de Jesus.
Quando o romance de Draw atingiu a marca de quarenta milhões de cópias vendidas, o cardeal Angelo Romani convocou todos os pesquisadores do Vaticano para uma reunião secreta em seu escritório, em Roma. Ele revelou o Papa estava preocupado com a propagação da teoria de que Jesus teria se relacionado sexualmente com Madalena e gerado um filho – que é, afinal de contas, o segredo que os maçônicos do livro de Draw guardam com tanto zelo, e pelo qual enfrentavam, há séculos, perseguição implacável e assassina das facções mais conservadoras da Igreja.
O cardeal nos confiou a missão de desacreditar a história apresentada por Jonh Draw. Com base no vasto material bibliográfico acumulado pelo Vaticano em bibliotecas de vários países, deveríamos sair pelo mundo dando entrevistas e publicando artigos, divulgando a versão oficial da Igreja: a de que Jesus nunca havia conhecido, no sentido bíblico, mulher alguma.
Eu, acompanhado de uma jovem pesquisadora espanhola, Josefa Rodriguez, escolhi a biblioteca católica de Madrid para iniciar o estudo de obras e documentos relativos à história do cristianismo. Tinha em mente alguns argumentos com os quais pensava arrasar o livro de Draw. Indignação não me faltava. Há tempos vinha observando, com furiosa irritação, a maneira oportunista e cínica como esses escritores se utilizam da religião para vender livros e enriquecer.
Passávamos as tardes na biblioteca e as noites em bares e restaurantes da capital, bebendo e conversando sobre o que tínhamos lido, procurando estimular um ao outro a fim de que nossos artigos possuíssem energia e carisma suficiente para causar queda nas vendas do famigerado romance. Graças a Deus a Igreja não proíbe o uso do álcool – muitos padres são inclusive alcóolatras, pois me seria impossível passar tanto tempo pesquisando a vida do Salvador não fossem os porres homéricos que me permitiam esquecer por instantes toda aquela enjoada carolice.
Josefa e eu nos tornamos amantes e, após duas semanas de tórrida paixão, decidimos nos casar. Fui à casa do pai dela, um venerando filósofo aposentado que morava numa ampla e arejada casa nos subúrbios de Madrid. Nessa mesma tarde, Dr. Fernado Rodriguez disse à filha, em tom estranhamente solene, que pretendia ter uma conversa a sós com o futuro genro. Josefa concordou tranquilamente e respondeu que aproveitaria para ir ao salão de beleza preparar-se para o grande momento, que havíamos marcado para dali a alguns dias.
O pai de Josefa conduziu-me a sua biblioteca, fechou a porta e sentou-se na cadeira atrás da grande mesa de mogno maciço. Sentei-me numa das poltronas. Ele tinha um olhar duro que me deixava pouco à vontade. Pediu que eu fosse até o bar, num dos cantos da sala, e nos servisse uma dose de uísque. Senti um alívio indescritível, pois temia uma conversa tensal e, pelos preâmbulos etílicos, não o seria. Ou se o fosse, ao menos não o seria a seco.
Levei o copo até ele, fizemos um brinde e voltei a me sentar. Ele continuava em silêncio, cofiando a barba branca, com expressão embaraçada. Enfim falou:
- Você sabe como Josefa conseguiu o emprego de pesquisadora do Vaticano?
- Imagino que ela tenha herdado do senhor o gosto pela pesquisa dos textos sagrados. O senhor também era pesquisador do Vaticano, não?
- Eu arrumei o emprego pra ela. Eu era o chefe do departamento de pesquisa histórica do Vaticano. Até que fui afastado.
- Afastado? Josefa não me disse isso. Ela contou que o senhor se aposentou...
- Ela nunca soube a verdade.
- Verdade? Que verdade?
Ele não respondeu. Ficou em silêncio, bebendo o uísque e estudando-me com seus olhos penetrantes. A essa altura, eu estava terrivelmente constrangido. Por que cargas d’água ele estava me contando segredos desse tipo? Após um tempo, voltou a falar:
- Eu pensava que levaria essa história ao túmulo, sem jamais compartilhá-lo com ninguém. Não suporto mais. Quando Josefa contou-me que iria se casar com um pesquisador do Vaticano, pensei: é uma grande ironia do destino. Ou sinal de Deus para que eu ponha um fim a essa gigantesca farsa. Não quero ver minha filha e meu genro vivendo num mundo de fantasia. Vocês têm direito de saber a verdade. No entanto, não tenho coragem de dizer isso diretamente a Josefa. Depois de toda a formação católica que lhe dei, ela não suportaria ouvir isso de mim. Mas você... você saberá explicar-lhe.
Será que o homem tinha enlouquecido, pensei, inquieto, remexendo-me na poltrona. Ao mesmo tempo, uma curiosidade crescente fazia-me cócegas no cérebro. Não disse nada, apenas assentei com a cabeça e esperei que prosseguisse.
- Josefa me contou sobre a nova missão de vocês, de desqualificar o trabalho do jovem americano que escreveu esse livro...
- O Filho de Jesus?
- É. Estou sabendo de tudo. Não o que o cardeal Romani lhes contou, é claro. Mas tudo, tudo mesmo.
- Como assim?
- Esse Jonh Draw recebeu dez milhões de dólares do Vaticano para escrever o livro.
- Quê?
- É isso mesmo que você ouviu.
- Mas como? O Papa está furioso com esse livro. Nós fomos contratados, como o senhor mesmo disse, para desqualificá-lo.
- É tudo uma grande farsa. Eles querem desviar a verdade, muito mais terrível que esse segredinho sobre o filho de Jesus. Jesus nunca teve filho.
- Eu sei. É sobre isso que estou escrevendo.
- Você não sabe nada. Jesus não teve filho. Mas teve um amante. Esse é o grande mistério por trás da história de Cristo.
- Quem era ela?
- Você não me ouviu? Eu disse que Jesus tinha um amante. UM AMANTE. Um homem.
- Ãhn? – Dei um riso nervoso. Bem que Josefa me avisara que seu pai era meio excêntrico.
- É, um amante. Essa história estava pra ser publicada por um escritor egípcio quando o Vaticano mandou assassiná-lo, em agosto de 2000. Logo depois contratou esse americano, para escrever um romance sobre o suposto relacionamento de Jesus e Madalena, que serviria para criar uma falsa polêmica, desviando atenções e blindando o imaginário coletivo com a imagem de um Jesus másculo, viril, heterossexual...
- Ah ah, faz sentido – quase sem me dar conta, eu havia secado o copo de uísque. Fiz um gesto pedindo autorização para pegar mais.
- Por favor, sirva-se. Pegue pra mim também.
Servi a mim e a ele novamente, e voltei ao meu lugar. Parecia estar sonhando. Diante do silêncio dele, perguntei:
- Me desculpe a pergunta, mas o senhor tem provas disso?
- Claro que tenho, não cometeria a loucura de lhe contar se não as tivesse.
- E eu... poderia vê-las?
Em tempo, lhe darei as instruções. Mas tome cuidado para que ninguém, sobretudo o Vaticano, descubra que você sabe.
Eles sabem que o senhor sabe?
Claro que não, senão já teriam me eliminado. Mas desconfiam. Por isso me aposentaram compulsoriamente.
Continuamos bebericando uísque e trocando idéias sobre o caso. Dr.Rodriguez fez um relato pormenorizado de suas investigações. Quando terminou, permanecemos calados por um longo tempo, meditando e fumando charutos.
Nesse momento, escutamos a campainha, tocada de maneira curiosa, ritmada. Com súbita expressão de horror, Dr.Rodriguez gaguejou:
- Não é possível!
Não preciso dizer que, com isso, declarei a mim mesmo que estava diante de um sujeito totalmente paranóico. Todavia não era o caso, os fatos em breve revelariam. Ele ergueu-se, pálido, sentou-se de novo e escreveu rapidamente um bilhete que guardou no bolso. A campainha continuava tocando. Dr.Rodriguez saiu do escritório, foi abrir a porta. Ao passar por mim, entregou-me o papel, sussurrando-me: “guarde isso com cuidado. Agora esconda-se, rápido”. Guardei o papel no bolso, levantei-me também e fui atrás dele. Como que por instinto, mantive-me escondido atrás da escada que dá para o segundo andar, próximo à cozinha e à porta dos fundos. Podia ver a porta da frente e ouvir o que eles falavam.
- Filha? Você os chamou? Por quê?
- Você traiu a Igreja, pai. Quando você disse que queria conversar com João, de um jeito estranho, eu decidi escutar o papo pelo buraco da fechadura. Diante do que eu escutei, não tive alternativa senão ligar para o serviço secreto do Vaticano.
- Mas filha... é verdade...
- Não interessa a verdade, pai. Interessa a fé.
- Isso não tem nada a ver com fé, filha.
Não pôde dizer mais nada. O sujeito alto e sinistro, vestindo uma túnica negra, que estava parado à porta, avançou bruscamente, segurando uma faca, e apunhalou-o no peito. O doutor desabou no chão sangrando muito. Os dois entraram apressadamente na casa, em direção ao escritório. Vendo que me procuravam, com intenções nada cordiais, entrei na cozinha e saí pelos fundos.
Pus-me a correr como um louco, chorando de raiva, medo, tristeza. Em questão de segundos, havia visto um bom homem ser covardemente assassinado, me decepcionado com a mulher que amava e, o que é pior, perdera a fé na Igreja Católica e na lenda de Jesus Cristo.
Sentado num banco de praça nos arredores de Madrid, puxei do bolso o bilhete que o pai de Josefa havia me entregue antes de morrer. Estava escrito o seguinte:
“Caro João. O amante de Cristo era Judas Escariotes. Por isso ele é tão odiado pela Igreja. Os documentos que provam a teoria estão num arquivo numerado em tal banco (ver instruções e senha atrás). Agora desapareça. Troque de nome e profissão. Agora que você sabe a verdade, e eles sabem que você sabe, eles irão te perseguir até o fim de seus dias”.
É isso. Hoje eu moro numa pacata cidadezinha rural, cujo nome não posso revelar, e estou escrevendo um livro chamado: “O amante secreto de Jesus”, o qual penso publicar sob pseudônimo e ficar milionário, superando o sucesso daquele farsante. Sei que corro risco de vida e tenho muito medo. Mas tenho um bom estoque de uísque para aliviar os temores. Maiakóvski dizia que é melhor morrer de vodka que de tédio. Eu digo: melhor morrer de uísque que de medo.