O menino
Quando o vi pela primeira vez, numa tarde chuvosa de Caxias, ele vendia laranjas junto ao muro da casa do pastor. Chorava muito, uns moleques o haviam roubado. Eu esperava o pastor chegar e vi tudo. Aproximei-me e perguntei quantas laranjas tinham levado. "Dez", ele disse, entre soluços. Estendi a ele uma nota de dois reais, que cobria o prejuízo. Ele olhou a nota, perplexo, sem entender que eu queria apenas ajudá-lo. Depois, sem falar nada, apanhou a nota e guardou-a no bolso. Reparei que uma de suas mãos tinha um aspecto estranho. Era grande demais, a mão de um adulto, e tinha pêlos grossos e escuros.
A mão esquerda era normal, mas a outra era bizarra. O menino notou que eu observava sua mão e a escondeu no bolso da calça. Encarou-me com um olhar frio.
O carro do pastor, um mercedes negro, parou diante do portão e ele saiu. Esqueci do menino e me dirigi ao pastor, sorrindo forçadamente. Vinha ali numa missão delicada: vários fiéis da minha igreja contaram-me que o pastor Sávio estava recebendo em sua casa gente de péssima fama na região, políticos acusados de corrupção, empresários suspeitos de ligação com o tráfico. Corria ainda o boate de que estariam ocorrendo orgias, com presença de prostitutas, na casa do pastor.
O pastor Sávio cumprimentou-me, muito rígido, sem sorrir, e olhou para onde estava o menino, que tirou a monstruosa mão direita do bolso e acenou.
Entramos na casa, após atravessarmos o jardim, e eu me instalei num dos grandes sofás que haviam por ali. Um crucifixo enorme na parede, sobre a televisão, parecia feito de ouro, e me despertou a curiosidade em relação à maneira como o pastor obtinha tanto dinheiro operando numa das paróquias mais pobres do Grande Rio.
Estava absorto em meus pensamentos, aguardando o pastor, que pedira uns minutos para tomar uma ducha, quando senti a mão tocar meu ombro. Virei-me, surpreso, e vi o menino das laranjas. Seus olhos tinham um brilho febril e louco. Por alguns segundos fiquei paralisado, incapaz de dizer qualquer coisa, olhando aquele menino estranho, com um espécie de inexplicável terror crescendo dentro de mim. Reparei que segurava, na mão peluda e grande, uma faca de cozinha. Ele sorriu. Dei um salto do sofá e fui atingido por uma pancada na cabeça que me fez desmaiar.
Acordei empapado em suor. Minha mulher me olhava assustada, de pé ao lado da cama, apontando para a sala. "Sávio, acorda!", a polícia está aqui. Levei alguns segundos para reunir os pensamentos. O sonho fora tão real! Um alívio enorme relaxou-me os músculos, que estavam horrivelmente tensos e doloridos pela sensação de terror provocada pelo pesadelo.
Subitamente, porém, um outro receio infiltrou-se em mim, de início lentamente, mas foi tomando conta. Eu não sabia o que era, e sentia relutância em tentar descobrir, como se a resposta fosse terrível demais para minha consciência.
Havia algo de muito estranho em tudo aquilo. Aquela mulher... eu não a conhecia. Não era minha mulher. E, porra, meu nome não era Sávio! Levantei-me num salto para me olhar no espelho pendurado sobre a cômoda. Meu rosto!
Eu não era eu! Lembrei-me do menino e sua mão horrível. Tentei recordar a noite anterior e senti uma espécie de dor aguda na cabeça.
Só muitos meses depois, conversando com um velho na prisão, descobri o que me acontecera. O pastor Sávio, ciente de que seria preso, realizou uma ritual satânico através do qual transferiu minha consciência para seu corpo. Ele, por sua vez, assumiu meu corpo físico e personalidade e conseguiu fugir das garras da lei.
E quem era o menino?, perguntei.
"Você ainda pergunta?", persignou-se o velho, assustado.